por Marcela Pimentel
A grande questão é que ele não pertence mais a essa casa. Pode pertencer aos seus corações, mas a casa não mais. Ainda há vestígios da presença dele aqui, mas isso não significa que o espaço tenha permanecido igual. Simplesmente, ele fez a escolha dele ao nos deixar de maneira tão precoce, tão imatura até.
Eu posso sentir a dor dela. A tristeza que ela evita deixar transparecer, mas que está lá, naquele olhar distante, naquele silêncio contemplativo. “Ele não morreu! Ele escolheu ir embora” eu digo, mas não adianta. Acho que para ela é como se uma parte dele tivesse de fato morrido. “Você não sabe o que é ver um filho partir” ela me diz. De fato, eu não sei e, de fato, deve ser algo doloroso para mães normais como ela. Respeito a dor dela, mas em algum momento isso precisa parar. Ele não vai voltar, e isso significa que ela não pode sofrer para sempre.
Resolvi deixá-la com a sua dor. Ainda é recente e nada do que eu diga será de algum modo eficiente. Só espero que ela não esqueça que eu estou aqui. Eu sempre estive aqui, cumprindo todos os meus deveres, sendo o filho exemplar. Mas ele não. Ele partiu para correr atrás dos sonhos. “Correr atrás do vento, idiota! E desperdiçar o dinheiro que nossos pais trabalham tanto para ganhar!” pensei em voz alta. Espero que nunca mais volte. Espero que suma no mundo, e pare de mandar os malditos cartões postais que tanto atormentam a minha mãe.
Aquele garoto estúpido. Tanto potencial desperdiçado. Ele podia ter se formado, podia ter terminado a faculdade de Direito e tido uma carreira decente. “Eu quero ver o mundo! A vida é muito curta para ser desperdiçada no escritório. Eu quero viver isso!”. Idiota. Como foi possível meu pai permitir um absurdo desses? Como pode ele ter dado um único centavo para essa loucura?
E além disso, ainda há a dor. A dor deles. A ausência presente que minha mãe não permite se dissipar. A preocupação constante no olhar distante do meu pai, cujo pensamento certamente está centrado no filho menor que partiu de casa sem destino certo, sem teto seguro, sem previsão de volta. Até minha própria esposa grávida esteve abatida nas últimas semanas. Sei que ela sempre encontrava distração nas histórias sonhadoras de meu irmão.
Oito meses se passaram. Os cartões pararam de chegar. Nenhuma ligação, e-mail ou mensagem foram recebidas nas últimas semanas. Cada dia que passa acrescenta uma nova dose de ansiedade à pilha do dia anterior. Não quero me envolver. Não suporto ver o que aquele pequeno estúpido está fazendo com meus pais, então me refugio até mais tarde no escritório. O celular vibra. É minha esposa. Com um sobressalta, eu atendo, e em menos de um minuto já estou correndo pelos corredores, em direção ao carro. Meu bebê está chegando.
Depois de horas de um cansativo trabalho de parto, tomo, cuidadosamente, meu filho em meus braços pela primeira vez. Meu primeiro filho. Tão pequeno e frágil. Vejo suas pequenas mãos encolhidas. Ali, naquele exato momento, um sentimento indescritível me atinge. Era meu filho, e eu daria o mundo por ele, até mesmo a minha própria vida. Meu coração se ligou àquele pequeno ser, de maneira que jamais havia pensado ser possível. Um elo invisível aos olhos, mas tão sólido e tão palpável, que coisa nenhuma no mundo seria capaz de suplantar. Ele me teria para sempre.
Assim como eu tenho meus pais. Olhando para meu bebê, veio a memória um versículo da Bíblia, que havia ouvido do sermão do pastor no último domingo. “Será que uma mãe pode esquecer do seu bebê que ainda mama e não ter compaixão do filho que gerou? Embora ela possa se esquecer, eu não me esquecerei de você!”[1]. Era Deus dizendo ao seu povo. Eu jamais esqueceria do meu filho.
Naquele momento, fiz uma oração silenciosa pedindo para Deus cuidar do meu bebê, ainda que eu não pudesse, e só a ideia já foi suficiente para inundar meu coração de puro medo e angústia. Aninhei meu pequeno em meus braços e chorei. Lembrei dos meus pais, da sua dor dos últimos meses, e pude, finalmente, entender. Como eles poderiam deixar de se preocupar com meu irmão? Talvez não exista mistério maior no mundo do que o amor de um pai por um filho. “Você mal chegou e já está me ensinando muita coisa, meu pequeno” disse ao meu filho. Então eu decidi. Só havia uma coisa a fazer.
Ao encontrar meus pais na sala de espera, abri os braços para ambos. Abracei-os como se tivesse aprendido, naquele momento, a abraçar. Sabia que eles precisavam daquele abraço. Eu também precisava. Haviam muitas feridas a serem tratadas ali. A ausência do filho menor, o afastamento do filho mais velho, meses de preocupação, o meu egoísmo desmedido, todas as minhas palavras duras dirigidas a eles.
Finalmente, ao me afastar, olhei em seus olhos e sorri. “Perdão. Agora eu entendo. Entendo tudo. Mas, não se preocupem. Eu vou buscar o filho perdido de vocês. Eu vou trazê-lo para casa”.
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[1] Isaías 49:15
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